A importância dos cursinhos populares para a formação acadêmica e social da população marginalizada no Brasil
Por Débora Mendonça, Giovanna Rausini, Letícia Souza, e Vitorya Souza
“Já pensei várias vezes em abandonar a escola, principalmente no primeiro ano por questão financeira para conseguir ajudar minha mãe”, diz Nicole D’Imperio, estudante do terceiro ano da ETEC de Paraisópolis e aluna do CPP (Cursinhos Populares Periféricos) – instituição fundada em 2023, que já conta com duas unidades de atuação (uma dentro do CEU Paraisópolis e outra no Colégio Plínio Negrão). A jovem, criada por mãe solo e periférica, representa uma significativa parcela da população que tem o sonho de estudar até o ensino superior. Ela pretende cursar Medicina Veterinária em uma das instituições públicas mais concorridas, a Universidade de São Paulo (USP).
Jovens como Nicole são levados a arcarem com responsabilidades que não condizem com sua faixa etária. Em vez de priorizarem os estudos e sair com os amigos, o trabalho vira uma alternativa eficiente para evitar questões como a insegurança financeira.

“Eu tive que trabalhar muito cedo quando era estudante e devido a esse fato eu reprovei o segundo ano do ensino médio. Decidi que não dava só para ficar trabalhando e que precisava estudar, e o conhecimento, o ensino e aprendizagem me possibilitaram a me emancipar tanto quanto ser social no mundo, quanto a me conhecer”, declara Wagner Sant’ana, ex-professor e coordenador do núcleo UneAfro Mabel Assis, em Guarulhos. “Trouxe oportunidades de trabalho, de amizades, conhecer lugares.”
Atualmente professor de redes privadas, Wagner pontuou que sua motivação para o envolvimento com projetos como os cursinhos comunitários se baseia em sua própria experiência. Ele, que não teve a oportunidade de ter acesso ao tipo de educação que oferece, busca levar, voluntariamente, essa oportunidade àqueles que têm o sonho ou necessidade de pisar dentro de uma universidade. O pedagogo destaca que trilha este caminho por acreditar no poder emancipador da educação.
A UneAfro é referência em educação popular e possui como principal objetivo unir seus propósitos a discussões antirracistas. Possui mais de 20 núcleos nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, contando também com uma plataforma digital. Tais núcleos são nomeados em referência a figuras importantes de cidadãos, em sua maioria negros, que contribuíram com o ensino ou com a causa racial, como Rosa Parks e Marielle Franco.
Apesar de levar o nome “cursinho”, a educação comunitária explora fatores que vão além dos exames vestibulares. Conscientiza, transforma e humaniza o processo de aprendizagem e experiências de pessoas como Nicole e Wagner. Os cursinhos populares expõem como o engajamento social torna-se primordial para que tal tópico ganhe a visibilidade necessária, pois segundo Wagner Sant’ana, o Brasil possui um problema estrutural de não investimento em educação. Mas existem pessoas dispostas a lutar pela manutenção dessa realidade.
Cursinhos populares: o esforço que os mantém
“A gente já tem conseguido colher frutos positivos, alguns alunos já entraram em universidade, teve aluno que entrou na USP, aluno na Santa Marcelina para fazer Odontologia. Enfim, esse é o objetivo principal, né? Levar essa galera para a universidade e devagarzinho a gente tem conseguido.” diz orgulhosamente Adriano Freires, coordenador pedagógico do CPP Paraisópolis ao falar sobre o retorno do cursinho como instituição de ensino.
De acordo com Adriano, apesar de sua relevância, os cursinhos populares carecem de apoio governamental. Instituições como CPP Paraisópolis e o Cuja (Cursinho Pré-Vestibular Jeannine Aboulafia) não recebem dinheiro público. Todos os gastos e manutenções são retirados do próprio bolso da coordenação e da equipe pedagógica. “Não temos nenhum tipo de financiamento externo, nem mesmo a bolsa de extensão da faculdade”, diz Matheus Arana, coordenador do Cuja. “Toda equipe faz parte desse ato de resistência (atuar dentro dos cursinhos) e precisa ser mais valorizada.”

Camila Alves, graduada em Letras e pós-graduada em Literatura, faz parte do time de voluntários da CPP dando aulas de inglês e linguagem. A jovem de 24 anos conta que sua história como educadora começou em 2023, último ano da graduação, quando conseguiu sua primeira vaga como professora. Motivada pela ânsia de educar, Camila também enxerga o cursinho como um caminho para realização de um projeto próprio. “Meu projeto inicial era criar um projeto de inglês, para ensinar todas as pessoas, não apenas as crianças, mas também os adultos. Para mim o cursinho é um caminho que vai me levar para esse objetivo final que ainda não foi alcançado”.
Alves comenta também sua preocupação em trazer dinâmicas que deixem a sala de aula e a absorção do conteúdo mais leves. Ela sabe (por ter ocupado o lugar de aluna) o quão difícil pode ser manter-se interessado em uma aula de Literatura, a depender de como ela é ministrada – ainda mais se considerar a bagunça que se tornaram as metodologias de ensino com as mudanças do novo ensino médio. Por isso, ela tenta organizar seus conteúdos pensando em como quebrar a barreira professor e aluno.
Em 2024, por exemplo, Alves conta que realizou um jogo de cartas sobre os movimentos literários, no qual separou grupos que representavam diferentes autores. A dinâmica foi bem recebida pela turma. “Eu senti que eles se conectaram mais com a literatura de uma forma que eu talvez nunca tenha me conectado antes.”
Tanto Adriano quanto Matheus deixam claro a liberdade fornecida pela gestão aos professores com relação a estruturação das aulas, com uma única ressalva sobre os conteúdos passados, que precisam, em peso, estarem relacionados aos mais cobrados nos vestibulares. Porém, dada a experiência dos docentes, nada os impede de passar propostas diferentes conforme necessário.
A Lacuna no acesso à educação
“Me sinto em uma escola particular se comparar com a escola que eu estudava”, conta Soraya Nicodemos, aluna do Cuja. “O ensino daqui é muito melhor.” A fala da jovem reafirma a importância dos cursinhos comunitários e também denuncia o retrato da educação pública no Brasil. “Os cursinhos são uma medida paliativa”, destaca Matheus. “Mas, a gente tem medidas concretas a se fazerem no acesso ao ensino superior e na qualidade da educação básica, que precisam ser feitas concomitantemente (ao trabalho dos cursinhos).”
Soraya se desespera ao lembrar o tanto de horas que tem de ocupar com os chamados itinerários. “No meu último ano do ensino médio, eu não tinha química, biologia, não tinha nada e a matemática era muito difícil. Você não entendia nada, chegava na hora e você se perguntava ‘e agora?’”, afirma. Irene Almeida, vice-diretora e professora de filosofia e sociologia do Cuja, conta que a defasagem dos alunos os quais tiveram um contato maior com o novo ensino médio é evidente: “A gente acaba tendo que ter um esforço a mais, porque a base que eles tiveram não está condizente com o que cai nos vestibulares.”
Irene também ressalta a importância de compartilhar o básico, para além dos conteúdos, com os alunos. “Temos uma disciplina que se chama DAP que é um apoio psicológico e auxilia nesse trabalho de como estudar, se preparar, e permanecer na faculdade”, diz a professora. “Cada professor vai contando suas próprias histórias. E muitos já estudaram em cursinhos populares, então vai mostrando para o aluno que é possível chegar na faculdade.”

Para a professora Camila, seu esforço e de tantos outros que mantêm em pé essas instituições de apoio é mais do que um trabalho voluntário.
“Acreditar no cursinho e no que ele tem a oferecer é um ato de resistência e é uma vitória.”
Camila Alves, professora do cpp
Humano, depois aluno
Os cursinhos populares vão além de melhorar as condições de aprendizado para os jovens; também são um ambiente no qual temas como segurança, apoio e realização se desenvolvem. Ou seja, um ambiente em que ser humano vem antes de ser aluno.
Adriano ressalta, por exemplo, que os cursinhos oferecem a adultos que foram privados ou tiveram que interromper seus estudos, a chance de realizar o sonho de cursar uma faculdade. O coordenador ilustra a importância da diversidade de faixas etárias nas salas de aula com um caso recente:
Ele relatou que uma aluna mais velha, mãe, moradora de Paraisópolis e empregada doméstica, o procurou com a intenção de ceder sua vaga a outro colega. Ela sentia que não tinha tempo suficiente para se dedicar ao cursinho e achava que estava “tomando o lugar de alguém mais jovem”. Embora quisesse desistir, Adriano conversou com ela e, como ele disse, “expliquei a importância de ter alunos como ela”, reforçando que o objetivo não é apenas “levar alunos para a universidade”, mas sim “trabalhar com o ser humano, para ajudar na vida e nas necessidades dessas pessoas como indivíduos.”
“O estudo pré-vestibular não é somente para prestar Enem e outros vestibulares, mas também é para a vida, sabe?”, reforça Wagner. Já Irene e Matheus falaram emocionados da sensação que tiveram ao receber de volta ex-alunos do CUJA, aprovados em faculdades, na aula inaugural de 2025. Os dois caracterizaram o momento como o resultado de uma educação humanizadora: “foi muito tocante a experiência de ver eles falando, olhando pra gente, “Você falou que eu ia passar, e eu passei”, disse Matheus. “Acho que essa troca é muito importante.”

No ano de 2024, Paraisópolis foi alvo de operações policiais. Camila relembra que as aulas acabavam em um horário relativamente perigoso e consequentemente, priorizando a segurança dos alunos, a professora foi responsável por lecionar no último turno, encurtar a duração das aulas e liberar os alunos mais cedo. Além dessa experiência, ela relata sobre a insegurança alimentar, realidade de muitos de seus alunos: “Recentemente, nós começamos a fazer lanches coletivos para que mesmo aqueles que vão sem tomar café ou sem almoçar consigam comer alguma coisa durante o dia”.
Wagner tem planos de organizar um cursinho “do zero”: “Estamos com sete professores e seis alunos e ex-alunos, queremos também fazer a comissão dos alunos. Estamos em construção, quase certo de termos um espaço na Unifesp de Guarulhos para a utilização de uma sala. A gente quer se tornar um núcleo por luta de cultura, fazer uma oficina de cinema, de teatro”, afirma, demonstrando que iniciativas de cursinho popular extrapolam e muito a educação.

Matéria extremamente necessária e muito bem construída!